Demora
Demora, eu sei
Mas uma hora
A ficha cai
E você entende
De repente
Que nem sempre
A cor mais reluzente
É dourada
E ela sempre esteve lá
Escancarada
Estampada
Como um tapa na cara
Pra quem quiser ver
E perceber
Que toda periferia é
E sempre foi vermelha
Não porque seja petista
Ou ostente ser comunista
Mas porque lá, irmão
Os tijolos mais acessíveis
Para se construir naquele grotão
No espaço que couber
Com o dinheiro que der
Uma, duas vezes por ano
São do melhor tijolo baiano
E permanecem assim
Nesse tom carmim
Não porque esteticamente
Seria mais agradável aos olhos
Como se pensaria normalmente
Ou que foi decidido comumente
Entre todos, que seria mais vantagem
Que o melhor tom para a paisagem
Vista de longe fosse vermelha
É vermelha porque lá, camarada
As ruas dos morros
Que constam asfaltadas
Nos anais da prefeitura
Desde sempre
Ainda são,
Na real
Nua e crua
São de terra rubra
Faça sol
Ou faça chuva
Porque as chamas
Que queimam
O cobre
Nobre
E o monturo de lixo
Atrás do muro
Com pixo
São vermelhas
E tem vela vermelha
E pimenta malagueta
No despacho da encruzilhada
De toda periferia encarnada
A periferia é vermelha
Porque é no farol vermelho
Sob um sol ainda mais escaldante
Que o menino
Sozinho
Anti-herói errante
Gira seus pauzinhos
Na esperança equilibrista
De angariar
Uns trocadinhos
Que todo motorista
Tem,
Mas prefere não dar
Só pra não incentivar
Pra não compactuar
É vermelha
Porque nos becos
Pontes e botecos
Para um instante de alforria
Olhos incendeiam
Em plena luz do dia
Não, ainda não virou moda
Como as bolinhas
E os cards na escola
Não virou moda
O uso em massa
De lentes coloradas
Pela molecada
A periferia é vermelha
Porque suas ruelas
São como veias
Abertas, rasgadas
Pela a sirene ensandecida
E seu furor escarlate
Genocida
Varando a madrugada
Como ratos cinzas
Em busca de comida
Ainda que a pele negra
Tenha a alma colorida
O líquido escorrendo na sarjeta
No domingo de manhã
É vermelho
E corre mudo em segredo
Ainda quente
E se misturou com a cor da aurora
Impunemente
Criando um terceiro tom
Que vai nos acostumando
Por ser tão recorrente
E me fica na mente
Essa pergunta
Martelando há anos
Quando é que vamos
Quebrar essa corrente?