Quarar (ou quando me desprendo do mundo)

Era dia de sol quente, de fazer a poeira da estrada latejar com o mormaço. Como a mãe ficara rodeando por ali desde cedo, o menino não conseguiu escapar e o jeito foi brincar ao pé do abacateiro mesmo. Mal soltou as rédeas da imaginação, a mãe com uma bacia cheia de roupa as voltas de uma rudia na cabeça o convocou para ir com ela até a bica para ajudá-la com a roupa. 

Muito a contragosto, o menino foi. Foi como quem resmunga com o pé, chutando pedras no caminho. Arrastava numa das mãos um balde vazio com uma barra de sabão de coco. Sabão de coco devia ser proibido, pensou enquanto rodava o sabão no fundo do balde, algum menino distraído podia sentir vontade de comer, pensando se tratar de doce e acabasse, com a gula, que lhe é próprio, dando uma bela de uma mordida, para se arrepender logo em seguida. Como sabia de ouvir falar de um caso assim, não corria esse risco.

A carranca estampada na cara do menino desanuviou-se, logo chegaram à bica. A água brotava das ranhuras da terra e se projetava pela canaleta, num eterno espichar de água cristalina, para beijar as pedras apinhadas no chão. A música perene desse momento hipnotiza, laça, puxa qualquer menino bicho híbrido, hídrico.  Com um aceno de cabeça enquanto aprumava a bacia de roupas na pedra, a mãe consentiu que se refrescasse com um balde de água fria. 

A pele encaroçou de vera. O menino assentou as ideias, se pôs de cócoras no alto da pedra e quarou vendo a mãe esfregar as roupas. Olhava-a e achava graça em sua quase dança de correr os braços pra cima e pra baixo, de torcer e sacudir no ar as camisas. Espumas e bolhas de sabão passaram a brotar timidamente da bacia. 

A primeira grande bolha em suspensão deu o estalo. O menino pulou da pedra e desapareceu entre os pés de mamona que rodeavam um canto da bica. 

Silêncio. 

Voltou com dois canudos do talo da folha. Sacudiu a ponta do canudo na água da bacia. A mãe não ralhou. As bolhas voaram para o alto do morro. Achou graça também. Sorriu com o encantamento do filho a soprar planetas e luas pelo cosmo. A tarde ficou mais leve aquele dia.

 


gil

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